Ao g1, cantora fala do início da carreira com luta contra assédio, preconceito e machismo: ‘Hoje eu entendo que eu marquei uma geração. Minha maturidade me permite me dar esse crédito’.
Reproudução
“Baba”, “Cachorrinho” e “Anjo” estão no álbum de estreia da Kelly Key. Lançado no segundo semestre de 2001, o disco vendeu mais de um milhão de cópias, mas foi muito além disso. O álbum antecipou o pop brasileiro de divas que depois foi dar em Anitta, Iza, Ludmilla, Luísa Sonza e tantas outras.
Kelly tem sete álbuns lançados em 20 anos de carreira. Hoje, aos 38 anos, ela se dedica menos à música e mais à carreira como influenciadora fitness e lifestyle, com mais de 8 milhões de seguidores no Instagram.
Ouvindo as letras das músicas fica muito claro que Kelly tinha um discurso empoderado, antes de essa palavra ser tão usada.
Ela tinha 17 anos e falou tudo que queria: dizia que só queria ficar ou que queria tratar o parceiro dela como um cachorrinho. Queria fazer babar o homem mais velho que a esnobou. Kelly podia sair “escondida” para beijar na boca e “fazer amor” ou querer um namoro angelical. Enfim, ela era dona de si.
Em entrevista ao g1 (ouça no podcast acima), a cantora relembrou o assédio e preconceito que sofreu no início da carreira e refletiu sobre a arte de fazer pop. Para ela, “Baba” não perdeu o sentido. “A arte ela não pode ser engessada, senão você nunca vai criar nada. A gente precisa ter liberdade de criação”, diz ela. Leia os principais trechos da entrevista.
Kelly Key no clipe de ‘Montanha-russa’, de 2020 — Foto: Reprodução
g1 – Você tem essas temporadas que você se dedica à música, você faz as pausas tanto pela vida pessoal quanto por outros trabalhos. Como você define quando você investe mais ou menos na carreira de cantora?
Kelly Key – É engraçado isso, porque eu comecei como apresentadora, depois eu comecei a cantar. E é onde eu tive maior repercussão. Foi onde as pessoas passaram a me reconhecer mais e as coisas de fato se tornaram grandiosas. Isso se tornou um negócio na minha vida, naquele primeiro momento. Como qualquer pessoa que vem de uma família já investidora, que fica pensando em futuro, aquele meu dinheiro todo foi investido em outras coisas além da música.
Eu tinha 17 anos quando minha primeira música tocou, eu era muito nova, então a gente conseguiu fazer negócios muito bons até os meus 20 anos, sabe? Fora a música… Então, a partir dos meus 25 eu já não vivia mais de música. A gente começou a investir e eu me casei [com o empresário angolano Mico Freitas], meu marido já veio com um conceito de investimento diferente, do que a gente estava habituado. Eu abri meus horizontes, a gente começou a fazer investimentos.
E aí outras foram surgindo na minha vida e eu comecei a fazer música por prazer. Só que a música exige muito da nossa presença física e tudo mais. Eu sempre fui mãe, né? A Suzanna está com 20 anos… Eu tive no meio desse trabalho a gravidez do Tur, do Vitor. E eu gosto de exercer a função mãe na sua plenitude, no máximo que eu puder. Eu não delego muitas coisas. Aí isso exige tempo, dedicação, a gente tem que saber escolher. Não adianta fazer um milhão de coisas e fazer tudo malfeito. Eu fui para a televisão, porque supostamente me daria mais rotina, coisa que a música nunca me deu. Porque não tinha horário de gravação, não tinha horário de voltar para casa.
“Se tem show, você não sabe se vai passar um fim de ano, sei lá, na neve ou se vai passar o fim de ano trabalhando. Aí a família está toda projetando um fim de ano e você de repente não pode se comprometer com aquilo. Porque existe uma empresa toda por trás, uma gravadora… Então, isso tudo sempre me travou muito na vida.”
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g1 – Fazendo música pop há quase 20 anos, o que você vê que mudou, trabalhando com produtores mais antigos e produtores de agora?
Kelly Key– Ah, muita coisa mudou, né? E outras não mudaram nada. [Risos] É engraçado, é complexo. Porque a gente vê muitas mudanças no óbvio, na questão do digital, na questão das entregas. Mas o tempo de produção mudou pra caramba, porque a gente tinha um CD que a gente trabalhava o ano inteiro. A música durava seis meses de trabalho. A música não dura um mês hoje. Está muito difícil assim, sabe? Tem uma rotatividade muito grande.
g1 – Por causa do streaming?
Kelly Key– Exatamente, isso tudo está muito acelerado. Eu ainda estou reaprendendo muitas coisas.
g1 – Os ciclos são mais rápidos.
“Muita gente que pensa que isso tornou o álbum descartável. Tem gente que coloca dessa forma. Muito triste pensar nisso. Mas eu fico reflexiva, quando me falam esse tipo de coisa, porque eu termino de trabalhar em um álbum e eu já tenho que pensar em outro. Isso se torna muito mecânico e assustador. Porque a gente está falando de arte. Arte é criação e leva um tempo.”
Então, esse é o meu medo, sabe? Eu acho que tudo tem que levar um tempo específico. Criação não é do nada, ela não brota. Ela aparece, ela vai surgindo e você tem que ter tempo para produzir as coisas. Então, acho que essa foi uma mudança grande que eu vi no mercado. E bem assustadora.
Agora, outras coisas que não mudam… é o preconceito com o pop nacional, é uma pena. A gente vê que mesmo hoje o movimento se tornando um movimento real, onde a gente tem muitas meninas em ascensão mostrando cada uma seu estilo, cada uma sua qualidade. A gente ainda vê que elas sofrem muito preconceito, não só por serem mulheres ou por serem do pop. Porque mulher também sofre muito preconceito em vários momentos.
Kelly Key no clipe de ‘Baba’, lançado em 2001 — Foto: Reprodução/Youtube
g1 – Você falou de preconceito, de machismo… Como era ser uma cantora tão jovem, quando você começou? Quão complicado foi lidar com machismo, com assédio? Você já teve que passar, acredito, por situações absurdas.
“Eu já passei por muita coisa, sem dúvida nenhuma. Assédio, então, nem se fala, né? E sempre fiquei muito triste, porque às vezes eu via boas oportunidades de trabalho, mas aí eu percebia para onde as coisas estavam caminhando… E eu já dizia ‘putz, que saco, vou ter que perder o trabalho, porque esse cara é um babaca’. Sabe? Várias vezes, eu passei por isso como mulher.”
O que foi interessante foi que como eu construí minha família muito cedo, isso aí também não durou muito tempo, né? E eu sempre tive uma postura muito, muito firme. Eu sempre tive uma postura muito boa e nunca fui frouxa em relação a isso. Sempre fui muito firme. Então, essas coisas não permaneceram muito tempo.
Graças a Deus, eu cheguei a um tamanho muito rápido. Então, as pessoas também não abusaram por muito tempo. Porque a gente que vive nesse universo, a gente sabe que quanto maior você é, menos as pessoas abusam de você. Porque você começa a ter muita opinião. Começam a ter um certo tipo de medo, de respeito. As coisas vão meio que mudando de cenário. Mas até chegar ali, por mais que tivessem sido seis meses, foram seis meses de ralação, de ouvir muita humilhação. Por ser mulher, por ser cantora, por ser bonita, por, sei lá, por ter uma bunda grande, seja lá o que for, não interessa, por rebolar, porque dança. Então, assim, ouvi muita coisa.
Mas é impressionante. Hoje, quando eu entrego o meu trabalho, as pessoas falam comigo com um carinho muito grande e eu fico bem surpresa. Porque eu não fui aceita assim dessa forma lá atrás, sabe? É surpreendente para mim. Por isso eu falo que eu não sabia que as pessoas gostavam tanto de mim. Eu não tenho hater na minha rede social. Você vai entrar ali nos comentários e eu não perco nem meu tempo excluindo ninguém. Pode ter uma foto que eu poste que a outra não tem a mesma opinião, mas não existe um hater que vem “sua flopada, sua ridícula”.
Datalhe da capa do DVD ‘Kelly Key ao vivo’, de 2004 — Foto: Reprodução
g1 – O primeiro álbum foi feito em parceria com o Andinho na composição e o DJ Cuca na produção. Como foi o trabalho com eles?
Kelly Key– O Cuca foi maravilhoso. Ele foi quem me ajudou a me descobrir. Porque ele foi muito importante no meu processo todo. Eu comecei com ele, porque ele estava produzindo o álbum em que eu estava vendo a pessoa botar a voz e não tinha alguém para botar backing vocal. Eu falei: “Ah, acho que eu posso fazer”. Aí eu fui lá e fiz um backing vocal daquele álbum… Ele falou: “Cara, tu canta bem, eu tenho um projeto muito legal aqui”.
g1 – Foi o 2000 [lançado em 1999 e gravado um ano antes], do Latino, né?
Kelly Key– Isso. E aí: “Eu tenho um projeto muito legal aqui, que a gente pode fazer uma coisa engraçada, ein? Eu tenho umas produções”. Ele tinha umas bases já prontas. “Se você conseguir escrever…” Eu que já tinha muitas coisas escritas, de adolescente, que eu sempre tive diário. Então, eu escrevia muitas coisas minhas, sabe? Coisas pessoais. Eu sempre fui muito tímida.
Então, hoje não tenho a menor característica do que eu era antes. Eu sou super diferente, super descolada, comunicativa. Mas eu não era assim. Então, eu guardava as coisas muito para mim. Então, eu escrevia meus problemas, as coisas boas, ruins. Não interessa. E aí eu gravando e aquilo, quando ele me trouxe as bases prontas para eu escrever, eu comecei a botar aquilo em música. Foi muito fácil, porque eu já tinha muita coisa escrita. E ela se tornou cantada.
O Cuca é muito criador desse meu primeiro projeto. E muito incentivador para que eu tivesse confiança no que eu estava fazendo. Ele foi um professor para mim. Porque eu fazia aula de canto, mas foi dentro de estúdio que eu aprendi como colocar a minha voz, como entender tudo. E aí depois quando a gente vai para a estrada, o exercício te cria. Depois, você começa a criar, mas ele foi muito importante.
Kelly Key faz show em São Paulo em 2019 — Foto: Divulgação/Audio
g1 – E o Andinho?
Kelly Key– O Andinho fez parte desse processo, junto comigo. A gente ficou uma semana trabalhando em músicas. Eu fui me descobrindo compositora. E eu juro, eu morria de rir das coisas que eu escrevia, porque eu achava que não faziam o menor sentido. Eu nunca imaginei ver aquilo como música. E aí nasceu meu primeiro álbum. Porque aí depois meu pai financiou nossa ida para São Paulo, né? A gente era do Rio e o Cuca é de São Paulo.
“Meu pai sempre trabalhou com posto de gasolina, restaurantes. E eu lembro disso, que bonitinho, ele tinha trocado a bandeira do posto dele… Que eu não lembro, sei lá, se era Shell e foi para Petrobras, Texaco, sei lá. E aí trocou a bandeira e nessa altura meu pai ganhava dinheiro, uma grande nota com essa troca de bandeira de posto. Aí meu pai pegou esse dinheiro e investiu nas nossas idas a São Paulo, na foto, no que quer que fosse, num look incrível. E a gente investiu nisso.”
Eu fui pra São Paulo e gravamos. Ficamos uma semana. Inclusive, meu pai foi junto. E aí a gente até brinca que em “Cachorrinho”, aquele assovio “shii shiii” é do meu pai. [Risos] Tem uma coisa bem familiar, o Andinho também foi e a gente criou o primeiro álbum ali. Com um pouco do meu diário, com um pouco disso tudo.
g1 – Eu tenho que falar da música ‘A loirinha, o playboy e o negão’ [do segundo disco, de 2003]. Porque hoje muito se fala não só sobre racismo, mas sobre ser antirracista. E essa música é impressionante, uma música pop que dá um recado. Qual é a sua relação com essa música?
Kelly Key– Foi uma música que sempre deu o que falar, mesmo naquela altura. É óbvio que tem um discurso… Acho que ela é… 2005?
g1 – Acho que é de 2002 [foi gravada neste ano e lançada em 2003].
Kelly Key– Olha, muito antes. Então, é um discurso de 2002, um discurso de praticamente 20 anos atrás. Muitas músicas foram mudando os seus discursos. Eu não lembro da letra dela tintim por tintim, mas eu acho que ela fala muita coisa importante. Eu sempre achei uma música muito forte, muito empoderada, muito boa. Ela foi muito criticada naquela altura. Eu lembro que o Zeca Camargo dizia que era a música preferida dele do meu álbum. O Zeca Camargo uma vez me encontrou no aeroporto e falou “Você precisa trabalhar ‘A loirinha, o playboy e o negão’. Você precisa”. A música nunca foi trabalhada e eu não sei por quê. Mas ela é um sucesso nos meus shows até hoje.
Kelly Key imita, em foto recente, o meme em que ela aparece em computador nos anos 90 — Foto: Reprodução/Instagram da cantora
g1 – Hoje existe um lado de tudo ser muito questionado. Você acha que uma música como “Baba” teria sido “cancelada” hoje? Eu sei que muito se falou sobre ela, sobre ser uma brincadeira. Mas você acha que teria espaço para “Baba” se ela fosse lançada hoje?
Kelly Key– Eu nunca fui ofensiva em nenhuma música minha. E essa tem que ser a principal preocupação.
“A arte ela não pode ser engessada, senão você nunca vai criar nada. A gente precisa ter liberdade de criação. E até porque os públicos não são pré-determinados. Eles ainda vão acontecer, as coisas vão acontecendo, você não tem muito controle. Não tem como tirar ‘Baba’ de onde ela estava e trazer para um outro momento.”
Apesar de ela ter sido depois regravada e ela teve outra expressão na voz de outras pessoas, inclusive a Maria Gadú [ouça versões de Gadú e Marcelo Camelo no podcast do topo]. Então, não sei. Ela é uma música forte, que marca uma geração.
Acho que os meus cinco primeiros CDs que foram lançados nos cinco primeiros anos da minha vida marcaram uma geração. Eu vejo através dos meus shows e tudo mais. Não era algo muito claro para mim. Nunca foi muito claro que eu marquei uma geração, mas hoje eu entendo que eu marquei uma geração. A minha maturidade me permite me dar esse crédito, sabe? E isso é bem legal.
Kelly Key posa com a filha Suzanna Freitas — Foto: Reprodução/Instagram da cantora
g1 – Última pergunta. Eu deixei a mais chata para o fim, sobre esses mitos do pop, sobre histórias mal contadas. Muito tem desse mito de que “Kelly Key era criação do Latino”. Ele não produziu nenhuma música sua, ele não compôs nada para você… Mas ele te apresentou às pessoas, aos contatos. Por que você acha que essa história rola tanto? E se não tem um quê de machismo nela?
Kelly Key– Sempre tem. Mas também porque é isso que vende, né? Por exemplo, sempre quando esse assunto vem à tona em uma entrevista, eu sempre faço a opção de não citar, porque ela corre o risco de ser uma chamada de matéria que não tem o menor interesse. Porque ela não fez sentido, ela não tem fundamento. Então, é natural que os universos que a gente comece a circular quando a gente está…
Por exemplo, minha filha é uma influencer, né? E ela tem muitos trabalhos em mente e é natural que eu queira que a minha filha esteja com as melhores pessoas, as pessoas que eu acredito, que eu confio. Então, ela estando no meu universo, se ela ver o meu maquiador, ela acha meu maquiador bom, ela pergunta “poxa, será que você pode me maquiar em um trabalho?” ou ela vê o meu fotógrafo… Eu até mostrei para ela o fotógrafo do meu videoclipe que eu gravei esses dias e ela “Ai mãe, que maravilhoso…”, porque ela vai fazer uma linha de maquiagens, “…será que ele não faz as fotos pra minha linha de maquiagem”. Então, é mais ou menos isso.
“Essas histórias, elas têm muito mais leveza do que o peso que as pessoas colocam, entendeu? Ela é muito mais suave do que pesada. Aí, como as pessoas levam pro pesado, eu prefiro nem dar continuidade, porque eu tenho uma vida completamente de tudo que as pessoas imaginem em relação a isso. Então, eu prefiro nem entrar nesse mérito.”
G1