O governo de Jair Bolsonaro deve promover uma abertura nas áreas de pesquisa e exploração de urânio, atividades que, segundo a Constituição, são monopólio da União.
Uma ideia que tende a ganhar fôlego no novo governo é a realização de parcerias do setor privado com a Indústrias Nucleares do Brasil (INB), estatal agora vinculada ao Ministério de Minas e Energia e encarregada da prospecção, pesquisa e lavra de jazidas de minérios nucleares. Nesse modelo, a União manteria o monopólio, o que evitaria problemas com a Constituição, mas ganharia agilidade para multiplicar áreas de exploração de urânio, mineral do qual o Brasil tem a sétima maior reserva mundial e que serve como insumo para mais de 11% de toda a energia elétrica consumida no mundo em centrais nucleares como Angra 1 e 2.
O sinal para uma maior flexibilização da pesquisa e da exploração do urânio no país partiu do ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, na semana passada. No discurso de transmissão de cargo, Albuquerque, um especialista no tema nuclear, disse que o novo governo pretende estabelecer um diálogo “objetivo, desarmado e pragmático, com a sociedade e o mercado, sobre essa fonte estratégica na matriz energética brasileira”.
“O Brasil não pode se entregar ao preconceito e à desinformação, desperdiçando duas vantagens competitivas raras que temos no cenário internacional – o domínio da tecnologia e do ciclo do combustível nuclear e a existência de grandes reservas de urânio em nosso território”, acrescentou Albuquerque. A Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa Mineral (ABPM) interpretou o discurso do ministro como um sinal claro de que o novo governo está disposto a discutir a abertura do setor.
A flexibilização das regras para pesquisa e produção de urânio foi um dos pleitos que entraram na pauta da equipe de transição antes mesmo da posse de Bolsonaro, segundo informou ao Valor um dos participantes da equipe. A expectativa, segundo a fonte, é que o novo ministro venha a tomar posição sobre esse tema, ouvindo o mercado.
As bases para a abertura haviam sido lançadas no fim do governo Temer, quando foi editado o decreto 9.600, de 5 de dezembro de 2018, consolidando princípios da Política Nuclear Brasileira. O decreto, cuja preparação foi conduzida pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI), agora chefiado pelo ministro Augusto Heleno, reserva uma parte para tratar da exploração mineral. Fala em fomentar pesquisa e prospecção de minérios nucleares, incentivar a produção nacional desses minérios e seus subprodutos para atender demanda interna e exportações e assegurar o “recurso geológico estratégico” de minério nuclear.
A INB detém o monopólio de pesquisa, produção e beneficiamento de urânio. Mas desde 2015 a produção está parada porque a mina a céu aberto de Cachoeira, em Caetité, na Bahia, a única então em atividade no país, deixou de ser viável economicamente. A empresa partiu para projeto de lavra subterrânea no mesmo local. Por causa de dificuldades no licenciamento, a INB decidiu investir em outra mina a céu aberto, na jazida do Engenho. “A expectativa é que a partir de meados de 2019 tenha início a lavra”, informou a assessoria da INB.
De 2000 a 2015, a produção de concentrado de urânio da INB (3,76 milhões de quilos) atendeu às necessidades de fornecimento de combustível para as usinas nucleares Angra 1 e 2. Mas desde 2015 o Brasil importa urânio para abastecê-las.
Mesmo com a produção anual estimada de 270 toneladas de concentrado, a partir da lavra da Mina do Engenho, a INB não conseguirá suprir a demanda total das usinas. “Mas já permitirá uma economia com a importação da ordem de R$ 50 milhões”, afirmou a INB.
A World Nuclear Association informa em seu site que minas no Cazaquistão, Canadá e Austrália respondem por mais de dois terços da produção mundial de urânio, que em 2017 foi de 59,5 mil toneladas. O Cazaquistão é o maior player, com 39% da produção global. Ainda de acordo com a entidade, mais da metade da minas de urânio do mundo em produção global. Ainda de acordo com a entidade, mais da metade da minas de urânio do mundo em produção pertencem a estatais.
Um ranking da associação mostra que as maiores empresas do setor são a cazaque Kazatomprom, a Cameco (com operação no Canadá e no Cazaquistão) e a francesa Orano. Rio Tinto e BHP Billiton também aparecem entre as grandes.
Segundo fonte da indústria, a parceria com o setor privado surge como possibilidade de expandir a produção de urânio no Brasil, uma vez que hoje a exploração deste mineral é mais difícil pois a tarefa cabe, exclusivamente, à INB. A estatal já fez parceria com a Galvani, grupo que atua na área de fertilizantes, para exploração de uma reserva de de fosfato com urânio associado em Santa Quitéria (CE), mas o acordo não saiu pois depende de licenças e da criação de infraestrutura, com apoio do governo do Ceará. Uma fonte lembrou que toda reserva de urânio precisa passar por dois licenciamentos: o ambiental, pelo Ibama, e o nuclear, pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), à qual a INB se vincula.
Outro executivo disse que a lógica de parcerias na pesquisa e na exploração mineral do urânio é a mesma que se aplica à geração de energia nuclear no Brasil. O controle da atividade deve ser da União, mas nada impede que seja contratada uma empresa privada para atuar na exploração de urânio. “Não há necessidade de mudança na Constituição para isso”, disse.
Segundo o interlocutor, a INB pode contratar uma empresa privada para prestar serviço de exploração. Nesse caso, o urânio seria da INB, que pagaria uma quantia para a empresa que prestar o serviço. Outra alternativa seria uma empresa privada ter uma participação minoritária na própria INB, mantendo a União como controladora da companhia. Ainda não se chegou à discussão de como deve ser o modelo de negócios nas parcerias entre o governo e o setor privado.
A fonte reafirmou que desde a exaustão da mina de Cachoeira, em Caetité, o Brasil deixou de produzir urânio, embora possua uma das maiores reservas mundiais. Se voltar a produzir em maior escala, poderá gerar excedentes para a exportação, levantando recursos para investir em outras etapas do ciclo do combustível nuclear, incluindo a conversão e o enriquecimento no Brasil.
A conversão consiste em levar o urânio concentrado para o estado gasoso, o hexafluoreto de urânio (UF6). É somente por meio desse processo que o urânio pode ser enriquecido. Já o enriquecimento consiste em aumentar a concentração do urânio, o que torna possível a sua utilização como combustível nas usinas nucleares. “O ciclo do combustível nuclear nuclear é outro ‘calcanhar de Aquiles’ no Brasil” disse a fonte.
No ciclo do combustível, o Brasil não tem escala para fazer a conversão do urânio em UF6, a segunda etapa do ciclo. O país só tem 15% de capacidade de enriquecimento, a terceira etapa do ciclo. Em relação à conversão, a construção de uma unidade industrial de conversão com capacidade de mil toneladas/ano demandaria investimentos de US$ 500 milhões.Já a construção de estrutura para o enriquecimento é modular e já vem aumentando.
Valor